domingo, 1 de março de 2015

31 anos - dia 04

Dando continuidade ao relato de ontem, resolvi falar sobre o meu sentimento em meu primeiro momento em terras russas. 
Para vocês entenderem o drama, paramos no Rio, encontramos um casal que já morava lá e partimos juntos para Frankfurt. Tio Jorge e sua esposa na época, tinha uma menininha com menos de um ano, a Alessandra. Eles tornaram nossa viagem um pouco mais alegre e menos dramática. Não existia celular como hoje para irmos passando as informações à família, então Papai fez uma ligação do orelhão no Rio e só uns três dias depois, já em Moscou, que conseguimos passar as informações de nossa chegada sãos e salvos. 
Há 20 anos viajar era caro, muito mais caro que hoje em dia, mas recebíamos uma fartura de comidas gostosas. No voo até Frankfurt devo ter engordado de cara uns 10 quilos. Em Frankfurt ficamos parados por umas 4 ou 5 horas esperando o voo para Moscou.
Ai começa o desespero. Jantamos, claro, uma comida estranha, mas gostosa. Devorei sem nem perguntar o que era. Não falávamos nem inglês, nem alemão e muito menos o russo. Toda hora alguém falava algo e como não entendíamos ficamos de boas. Perguntávamos para o Tio Jorge e ele sempre fofo e tranquilo dizia que não estava entendendo. Tempos depois descobrimos a farsa: ele falava inglês e a esposa alemão e russo e eles só não quiseram nos alarmar. 
O fato é que algo aconteceu no avião e bem depois de rodar e rodar, descemos de: barriga! Sim amigos, meus primeiros momentos em terras russas foram olhando pela janela: bombeiros, ambulâncias e redes de televisão. Mas para o Tio Jorge, tudo estava bem e eu sou muito grata até hoje pela calma dele naquela noite gelada de terça, 31 de outubro de 1995.
Descemos, fizemos o nosso cadastro de entrada no país. Tudo muito estranho com gente esquisita. Obvio que eu não entendia nada do que eles falavam e sinceramente, eu estava tão cansada que nem português eu queria falar.
Quando a porta abriu eu travei. Um vento muito gelado bateu em meu rosto e eu me dei conta de que não tinha volta. Mas eu comecei a dar um chilique tão bizarro que Mamãe em sua sábia orientação me disse: "anda logo se não você vai levar sua primeira surra já aqui no aeroporto". Peguei meu cachecol e cobri meu rosto inteiro. Nossos casacos não aguentaram nem o percurso até o carro. Detalhe: fazia 0º. E seguimos pelo caminho para o nosso primeiro futuro apartamento e eu olhava pela janela atordoada pelo que viria e pelo que eu queria viver. E lembrava do meu professor dizendo que morreríamos congelados, mas confiava em Papai que me garantiu que conseguiríamos. E pensava: bem, Papai falou que vai dar tudo certo, que muita gente morava no frio e sobrevivia sim. Ah e ele me contou que havia verão ali em algum momento do ano. Me acalmei na hora. Pensei no sol e no dia, e no céu azul e confiei em Deus e deu tudo certo. E vi um Mcdonald´s, ou seja, havia vida normal ali. Tudo certo. 
Chegamos ao apartamento antes da meia noite. Uma amiga do Papai já tinha colocado camas e deixado alguns mantimentos para nosso primeiro dia, que lógico foi só dormindo. 
Acordamos no dia 01/11/95 e não nevava ainda. Não saímos de casa. Isso aconteceu somente no dia 02/11/95 porque era feriado na Embaixada e nosso amigo Tio Jorge saiu com a gente para comprarmos casacos e botas e todos os outros itens indispensáveis para a sobrevivência no frio. E aí nevou. Uma neve leve, mas que eu via pela primeira vez na vida. Chorei de alegria, de medo e acima de tudo de gratidão. Porque vamos pensar: eu que não tinha nem expectativa de nascer, de repente me encontrava em um país a mais de 12 mil km de distância e vendo a neve ali caindo sobre meu corpo que na época tinha menos um pouco que 1,55. Era emoção de mais para quem só tinha 11 anos. 


31 anos - dia 03

Para o terceiro dia, resolvi reviver meu último dia no Brasil, antes de embarcarmos para a tão temida Rússia. 
Alguns meses antes, Papai chegou com essa novidade. Para mim era uma mega novidade, porque sinceramente em minhas aulas de Estudos Sociais, ainda não tínhamos chegado na fase de estudar o mapa múndi. Quando contei a novidade para meu professor, ele meu vizinho na época, virou e me disse que lá era tão frio que não sobreviveríamos, o que gerou em mim um pavor monstro. Mas isso não tirou de mim o ar de superioridade, pois sim, quando criança eu era zero humildade. E os preparativos corriam solto enquanto eu tentava passar de ano em outubro. Ao mesmo tempo eu fazia catequese e tive que fazer a 1ª Comunhão sozinha, mais de um mês antes da turma. Isso aconteceu em 15 de outubro de 1995.
A viagem foi marcada para o dia 29 de outubro, um domingo frio e cheio de expectativa. 
No dia 28 aconteceu uma festa de despedida na casa de uns amigos dos meus pais que terminou às 05 da manhã. Chovia, mas a animação era imensa, ao mesmo tempo que lá em casa o clima era quase de enterro. 
Lembro de chegar e capotar e às 09 mamãe me acordar pois minha professora de catequese queria se despedir de mim. Ela me ligou antes e choramos muito ao telefone. Até que ela apareceu lá em casa e me deu uma caneta, que eu usei até estourar a tinta dentro da mochila quase um ano depois.
Da hora que acordei até a reunião de despedida na sala da casa do Guará, lembro que estávamos muito silenciosos e chorosos. A família inteira rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria com o coração cheio de tristeza e esperança. 
E todos fomos ao Aeroporto nesse mesmo silêncio. Amigos também foram, ganhei presentinho do meu irmão, que guardei durante muitos anos. Compramos revistas. 
Mas a hora de embarcamos foi um dos momentos mais tristes que já vivi em minha vida. A dor da partida cortava nossa alma e depois de todos os abraços e desejos de boa sorte, na virada do corredor de acesso à sala de embarque, escutávamos Sobrinha Ratattoulie gritando: "volta Mainha, volta". Mainha é a forma carinhosa com que ela chama minha Mamãe até hoje. E até hoje eu escuto nitidamente a voz de desespero dela nos vendo ir embora e claro, na cabeça dela de 3 anos, para nunca mais voltar. 
No avião, Mamãe e eu só chorávamos. Papai não chorava, mas tinha os olhos marejados. Um silêncio profundo tomou conta de nossas almas até nossa chegada ao Rio, de onde pegaríamos um voo para Frankfurt e daí para Moscou.
Meu último dia no Brasil, há quase 20 anos é exatamente esse como descrevo aqui. Um dia onde eu com então 11 anos, era uma pessoa muito envolvida com os meus próprios problemas de criança, onde eu acreditava que amanhã seria um dia melhor, mesmo que esse dia fosse longe dos meus amados familiares. Na minha cabeça já um pouco adulta, era preciso. Era preciso ter força. Eu precisava a partir dali ser forte pela minha mãe. Quando viajamos para a Rússia, iriamos inicialmente ficar por um ano, mas sempre soube internamente que seria o contrário, que teríamos que ficar muito tempo e foi o que aconteceu. A notícia de que ficaríamos 4 anos não me chocou. Eu precisava sempre ser forte. E apesar dos pesares, acho que fui.